quinta-feira, 27 de maio de 2010

Parkour como uma fase



Em pouco mais de quatro anos, o Parkour me deu acesso aos mais variados tipos de pessoas. Umas duraram meses em minha vida; outras somente horas; algumas só vi uma única vez e as mais insistentes estão ainda hoje ao meu lado. Cada uma delas chegou de mansinho, vindas do seu próprio mundo particular; às vezes com objetivos bem definidos e outras vezes sem nem saber o porquê de estarem ali.

Tive o prazer de ser espectador da trajetória de várias dessas pessoas, ouvir suas histórias, conhecer um pouco da realidade em que vivem e o desprazer de me frustrar ao ver grande parte delas sumir dos treinos e da minha convivência. Nunca fui um defensor do lema “Parkour não é para todos!”. Mesmo que faça todo sentido do mundo, meu positivismo (e um pouco de teimosia) sempre se recusa a aceitá-lo.

Em postagens anteriores já falei o quanto me sinto culpado quando alguém decide parar de treinar. Aquele velho código de ética chato que me deixa com a sensação de que não dei o meu melhor pra fazê-lo compreender o quanto esse mundo é incrível e infindável.

Desde que o Tim Pisteur (um cara que fez muito pelo Parkour mundial e que tinha mais de 10 anos de treino) anunciou que ia abandonar de vez a atividade, essa postagem estava engasgada na minha mente. Enfim resolvi tomar vergonha na cara e dar vida a ela.

A nova cadeia de pensamento que estou desenvolvendo pra mim mesmo consegue me satisfazer como tracer e como ser humano. Consiste em apenas aceitar o Parkour como uma fase (opcional) do desenvolvimento humano. Nessas horas eu sinto orgulho de mim mesmo por não ter dormido as aulas de psicologia na faculdade. Pra quem não conhece Jean Piaget, um mestre na arte do estudo do desenvolvimento humano, esse cara foi quem estabeleceu e estruturou as 4 fases básicas pelas quais todo ser humano passa:

01 - Desenvolvimento sensório-motor (de 0 a 2 anos)
Acredito que trata-se de um dos momentos mais foda de nossas vidas. É quando somos bombardeados com informações visuais, estímulos sensoriais e percebemos que existe um mundo lá fora: estranho, independente de nossa vontade e que devemos aprender a lidar com ele e suas regras. Tudo que fazemos até então é apenas existir e aprender. Um alienígena sedento por informações em um planeta desconhecido.

02 - Desenvolvimento cognitivo: pré-operatório (de 2 a 7 anos)
É onde a coisa começa a ficar séria. A criança se dá conta de que tem voz ativa (começa o processo mais eficiente de educação) e aprende a selecionar as experiências de acordo com a sua vontade. Ela descobre o que é o prazer e a frustração, e então começa a usar de artifícios para ludibriar e manipular os acontecimentos a sua volta. O que importa verdadeiramente é a satisfação dos seus desejos e vontades. É basicamente nesse estágio que o ser humano começa a manifestar as características (boas e más) que irão compor sua futura personalidade e é justamente aí onde os educadores devem orientar efetivamente.

03 - Desenvolvimento cognitivo: operações concretas (de 9 a 11 ou 12 anos)
É a fase onde começamos a prestar atenção nas diferenças de opinião e a avaliar o que faz ou não coerência no mundo. A criança passa a defender seu ponto de vista sem necessariamente o impor. Nasce o senso crítico e com ele a capacidade de produzir e buscar informação. Nos tornamos capazes de dialogar uns com os outros, a ceder voluntariamente em situações de erro e a termos nosso valores morais melhor definidos e organizados.

04 - Desenvolvimento cognitivo: operações formais (de 11 ou 12 anos em diante)
Agora que já passamos por um processo enorme de aquisição de valores, chega o momento de darmos passos por conta própria. Com todo esse aprendizado a criança é agora capaz de refletir por si mesma, estabelecer idéias que são suas e buscar meios de concretizar seus objetivos. A capacidade mental é desenvolvida ao ponto de criarmos conclusões e preconceitos sobre assuntos, baseados apenas em nossas vivências pessoais. E é por isso que o período de amadurecimento é o momento de questionamento de valores e de, muitas vezes de forma egoísta, achar que nossas idéias são capazes de transformar o mundo e fazer dele um lugar melhor.

Apesar dos períodos estarem delimitados por idade, é óbvio que os números só devem ser considerados como uma base. Pessoas diferem uma das outras e cada situação biológica é diferente. Da mesma forma que há casos de crianças que começaram a andar com 7 meses, existe de crianças que só andaram com 2 anos.

Mas e onde o Parkour entra no meio disso tudo? Muito simples. Peço que volte os últimos parágrafos e releia os 4 enunciados novamente. Só que ao invés de pensar no desenvolvimento de uma criança, pense no seu trajeto de vida dentro do Parkour. Substitua todas as palavras referentes à “criança” pela palavra “tracer”. E então retorne até este ponto.

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Compreendeu?

Muitas vezes passa despercebido aos olhos dos praticantes, mas o Parkour tem essa capacidade incrível de ensino, descoberta, aprendizado e nova compreensão de mundo. Da mesma forma que um feto passou 9 meses preso, limitado e no conforto de seu mundo particular, éramos nós, praticantes, antes de conhecer a atividade. O Parkour te joga em um universo novo e estranho, onde você terá outros pais, mães, irmãos, mestres e amigos. Eles irão te estender à mão, dar apoio, palavras de incentivo e ficar ao seu lado, mas em nenhum momento poderão dar os passos por você. Alguns os escutarão, outros se farão de surdos. E da mesma forma que uma educação básica ineficiente pode criar um ser humano “ruim”, a orientação, ou melhor, a falta dela nos primeiros momentos junto ao Parkour, pode criar tracers “ruins”.

Agora me explica: porque ficar frustrado, com raiva ou revoltado com alguém que parou de treinar? A sensação deveria ser de vitória. Afinal de contas, aquela pessoa se propôs a uma aventura nesse novo mundo, encarou desafios, e os vencendo ou não, ela aprendeu alguma coisa. A experiência de vida não pode ser apagada e o mínimo de valores ou idéias que foram apresentados a ela, estarão presentes pelo resto de sua vida. E indo mais além, quem sou eu ou você para julgar o quanto de aprendizado já foi o suficiente? Podemos sim ter uma opinião e criticar atitudes, mas jamais obrigar alguém a ter o nosso mesmo pensamento ou menosprezar aquele que já completou uma parte de sua jornada.

Para alguns, estar envolvido com o Parkour se tornou sinônimo de viver, mas vale lembrar que a vida continua a existir para milhões de outros que não fazem à mínima idéia do ele é e do que pode representar. E cá pra nós, a vida por si só já é o maior dos obstáculos e que muitas vezes flow nenhum é capaz de deixar pra trás.

Então é isso. Da próxima vez que for lidar com um iniciante, trate-o como uma criança em seus primeiros anos de vida. E assim como fazem os bons mestres, seja um exemplo de caráter, conduta e boa informação para que ela possa um dia fazer o mesmo por alguém.

Piaget não conheceu o Parkour.
Mas algo me diz que ele foi um excelente tracer.