sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Hackeando o Parkour

Antes de começar, eu gostaria de um favor. Onde estiver, feche seus olhos e respire fundo 3 vezes. Vai por mim. Faz isso pois você vai precisar se quiser ler o resto e entender alguma coisa. Inspire pelo nariz e solte pela boca. Vai lá. Eu espero. Se não fizer, você vai me chamar de louco no final do texto... Quando acabar, volte aqui e continue a leitura bem devagar (e com voz do Arnold Schwarzenegger).

"Você não está lendo esse texto. O ambiente a sua volta não é mais o mesmo. Você está agora com olhar fixo no último salto que você voltou pra casa sem fazer. Consegue se lembrar dele? Ele lembra de você. As palavras seguintes não são ditas por mim. Elas surgem do nada em sua mente porque eu sou o abismo. De onde estou, eu te assisto. E nesse exato momento, consigo ver a tremedeira de sua perna, o suor que desce na lateral do seu rosto e a indecisão no seu olhar. Você quer muito me saltar, não é? Sou eu quem te separo de seu objetivo. Mas quem decide o que fazer aqui é você. Me salta ou recua?

Ih... essa desviada de olhar que deu agora me deu a certeza de que já desistiu. Ih... Olha só... tá vendo? Colocou o pezinho pra trás... agora é que vai embora mesmo! Vai lá! Até mais ver! Quem sabe a gente se vê um outro dia... ou não. Mas antes de você ir eu quero que você saiba exatamente porque você não me saltou. Sabe porquê? Você recuou porque eu hoje sou mais forte que você."

O abismo é muito filho da puta, né? Ele não tem pena de você. Nunca. Ele não quer saber o quanto você ralou para estar ali. Ele não quer saber se você vai perder o sono lembrando desse momento. Ele só quer uma resposta objetiva de você: pula ou não pula. Porém, como a gente viu, quem decide o último ato da história somos nós. Os praticantes. Somos nós que temos a perder ou a ganhar com o salto. O abismo, independente de qualquer coisa, continuará sendo sempre o mesmo. É você quem muda com o passar do tempo.

Mas o que te faz tomar a decisão de recuar ou avançar?

Esse texto é uma reflexão sobre como eu enfrento os meus abismos. O método que eu encontrei para reduzir as minhas indecisões e, embora eu saiba que ele pode servir unicamente para mim, eu espero que ele contribua para que você descubra o seu jeito também.


O Nível de Experiência




Quanto mais a pessoa treina Parkour, mais automatizada e natural torna-se a movimentação. Se tem uma coisa que apesar de óbvia irá te encantar no Parkour é isso. E esse encanto eu vi surgir em mim diariamente. Depois de alguns anos, você não prepara mais tanto e nem precisa mais pensar tanto no que precisa fazer. Você apenas faz. Mas no começo, é uma complicação dos infernos! E, talvez por esse motivo, por essa indecisão do que fazer e de como fazer, os primeiros anos de treinamento sejam uma grande confusão gostosa de se vivenciar. Como todo mundo, eu passei pela época onde eu tinha que contar pés e duvidava a cada segundo se eu era capaz de fazer o que queria fazer. Hoje essas dúvidas aparecem bem pouco. Eu olho e sei. Mas embora essa decisão seja tomada em questão de segundos (ou até menos que isso) eu percebi que ela só acontece por conta de um processo totalmente racional. E eu enfim o compreendi a ponto de conseguir explicar.

Existem, para mim, três coisas que determinam o sucesso ou o fracasso de uma movimentação:




A exigência física. Ela é responsável por boa parte do seu sucesso, mas nem de longe de todo ele. Quando me refiro a essa parcela física, eu não estou contabilizando apenas sua força, mas sim tudo aquilo que possa ser exigido de seus músculos e articulações. Nessa categoria encontram-se misturado: força, flexibilidade, resistência, técnica, velocidade, agilidade... Isso tudo, batido no liquidificador, é a sua capacidade física.



 
A exigência psicológica. Com frequencia atribuímos apenas o medo como fator psicológico. Mas é importante saber que ele é apenas mais um dos que compõe essa exigência. O medo é uma reação de proteção do seu corpo e que, no Parkour, frequentemente te alerta para prestar atenção. Porém, em vários momentos ele apenas surge depois de você já ter sentido uma outra coisa. E essa outra coisa pode ser: a insegurança no seu corpo ou no local em que se encontra, o déjà vu de se deparar com um movimento que já te causou problemas no passado, o pessimismo de achar que algo pode dar errado (ou vai dar errado) e tudo aquilo que irá fazer você travar uma batalha consigo mesmo antes de tomar uma decisão.



O desconforto gerado. É importante entender que cada movimento seu exige um certo nível de desgaste. O natural do ser humano é tender para a inércia e para ações que cada vez consomem menos energia. Por exemplo, levantar da cadeira para fazer um vault exige que você rompa com essa inércia. Por sua vez, levantar da mesma cadeira para fazer um cat leap distante já exige muito mais do que foi exigido de você para o vault. E assim sucessivamente. Porém, em alguns momentos, esse desconforto irá se apresentar de forma muito mais descarada. As vezes, ele é o ângulo em que o obstáculo se encontra, a pisada da precisão que é torta ou que só cabe um pé, as vezes ele é a finura do corrimão ou da pegada no muro e as vezes ele é simplesmente a sua falta de habilidade em usar o lado do corpo que tem mais dificuldade. Entender o quanto de desconforto o que eu quero fazer me causa é o pontapé inicial para que eu entenda se sou ou não capaz de realizar o que pretendo. Primeiro eu checo isso, depois eu parto para as duas características anteriores.

Onde entra o risco?

Existe um quarto ponto que para mim é fundamental na escolha se eu vou ou não fazer uma movimentação. O risco. Porém, ao contrário dos outros três, esse não é determinado diretamente pelo movimento. Eu não acredito que no Parkour exista movimento mais arriscado ou menos arriscado. Pra mim, existe habilidade mais ou menos treinada. Até porque as movimentações no Parkour se repetem todo o tempo: uma precisão de 2 metros de distância continua sendo uma precisão de 2 metros de distância independente da altura ou de onde você estiver. O que varia é apenas a maneira como você a enxerga. O referencial não muda o movimento.

Arriscar é por definição se expor ao risco. Eu não vou gastar muito tempo explicando pontos detalhados sobre isso porque seria material para um outro texto. O que eu preciso que você entenda agora é que quando você se propõe a fazer uma movimentação sem ter o nível exigido por ela, em qualquer dos atributos que citei anteriormente, você se arrisca. E isso não é algo necessariamente ruim. Eu acredito que é importante haver momentos em seus treinos onde você não terá controle sobre tudo. Nesses lampejos, nessas oportunidades, abre-se uma janela para você compreender suas fraquezas, seus pontos a melhorar e você recebe um choque de realidade (e esse choque é necessário porque com o tempo a tendência é você começar a acreditar que é capaz de enfrentar qualquer chefão e resgatar qualquer princesa!). O bom senso deve sempre ser o seu fiel escudeiro. Até porque, muitas vezes, você não irá conseguir contabilizar milimetricamente o nível físico, psicológico e o desconforto em que você se encontra. Em outras situações, sua contabilidade pode estar errada e você achar que é capaz e na verdade não ser. Então não tem jeito, uma hora isso vai acontecer. E quando acontecer, você vai se pegar arriscando assim como eu já me peguei diversas vezes.

É importante deixar claro que, na maioria das vezes, quando eu ouso me arriscar eu não estou automaticamente me sentenciando ao machucado e nem jogando a minha saúde ao azar (apesar do significado de "arriscar"). Essa decisão de encarar, mesmo sem ter plena certeza, não é aleatória. Ela é tomada baseada em todo um processo árduo de treinamento de anos. Então, nesse ponto, a parada se torna bastante pessoal: essa percepção varia e cabe unicamente a cada um interpretar o mais corretamente possível os sinais que o corpo envia. O risco é apenas o resultado final dessa incapacidade de calcular a habilidade que se tem perante o desafio proposto.

O Duelo

Agora que consegui explicar os fatores que me fazem escolher se devo ou não fazer algo no Parkour, eu posso bater tudo no liquidificador e trabalhar de forma unicamente lógica:




Essa carta é a representação do meu processo mental de análise para realizar uma precisão como a da foto. Se prestar atenção, verá que se encontra ali separadamente o quanto essa movimentação irá exigir de mim em cada setor. É exatamente assim que eu enxergo cada obstáculo dentro do meu treino. 

E, só pra facilitar, já que eu criei uma cartinha para simbolizar o obstáculo, eu irei fazer o mesmo para me representar naquele momento e situação.




Essa segunda carta é como eu me avalio ao encarar aquela mesma precisão.  Trata-se de um check-up que acontece ininterruptamente durante o treino e é automático e instintivo. Da mesma forma que o meu corpo sinaliza quando tem fome, ele sinaliza quando alguma coisa interfere no meu estado atual. Se o treino for intenso, essas capacidades aí listadas obviamente vão reduzindo com o passar do tempo. Por esse motivo é muito mais fácil você me ver realizar algo mais perigoso ou complexo no inicio e no meio do treino do que no final dele. Outra coisa interessante é que essa carta condensa as informações sobre mim perante aquele desafio em especifico e dentro daquelas condições. Durante todo o treino, para cada obstáculo que se apresenta, meu corpo me envia automaticamente o meu check-up tanto desse obstáculo quanto do meu corpo contra ele. E acredite... isso é feito de forma tão rápida que durante um flow eu sou bombardeado com várias e várias dessas cartas e é da análise delas que eu escolho por onde devo seguir e o que devo fazer.

Então, vamos agora ao duelo:



 Note que, para mim, minha condição física é 3 vezes maior que a exigida praquela precisão. Isso não quer dizer que eu consigo saltar 3 vezes essa distância, mas sim que numa avaliação geral de explosão, absorção, força na perna, resistência e outros atributos, eu me sinto numa condição muito mais elevada fisicamente do que a que vou precisar. 

Note também que minha confiança (capacidade psicológica) em precisões desse tipo é muito mais elevada do que a necessária. Isso se deve a muitos fatores, entre eles: eu não ter medo de saltar naquela altura, eu ter certeza que se cair dali eu tenho força para absorver o impacto na perna, eu já ter feito precisões mais desconfortáveis que aquela... e outros. Minha análise rápida me diz que eu estou psicologicamente muito acima do que preciso estar para fazer aquela precisão.

E por último, eu sinto que, naquele momento, naquela hora, minha resiliência, minha capacidade de resolver o problema e minha disposição em usar tudo que tenho para isso, é muito alta. Se eu estivesse de saco cheio, cansado, de muito mau humor ou até mesmo se eu tivesse ido ao treino só para acompanhar os amigos, provavelmente minha resiliência em encarar esse tipo de desafio iria estar muito mais baixa também.

E o vencedor é...

Ufa! Explicado tudo isso, torna-se bem mais fácil de decidir, não acha?
Eu bato o olho e sei se aquilo é pro meu bico ou não. Minuciosamente.

Obviamente aqueles dados foram inventados por mim agora. Eu não enxergo números o tempo inteiro, mas o que quero deixar registrado é que existe um processo lógico que me faz realizar as escolhas no meu percurso. Logo, se não há evidências que me levem a duvidar de mim em nenhuma das características que preciso observar, eu posso executar minha movimentação sem medo de ser feliz.

Eu sou um cara muito previdente nos meus treinos. Então, o natural para mim é só realizar movimentações em que eu tenha plena consciência de ser capaz de executar. Eu sou tão chato que se, por exemplo, o catleap exigir 70 de esforço físico e eu me autoavaliar com 70 de capacidade física, a tendência é que eu não o faça. Eu seria capaz de realizar corretamente? Seria. Mas eu escolho não saltar.

Quando resolvo fazer algo pela primeira vez, quando decido desbloquear uma movimentação, na maioria das vezes isso quer dizer que eu já estou pronto para executar algo muito mais superior, complicado, puxado e difícil do que ela. Meu senso de proteção é muito maior do que a satisfação do meu ego dentro do treino. Então eu prefiro sempre manter uma margem de segurança elevada.

Trocando em miúdos, a naturalidade e a segurança da minha movimentação vem na realidade de todo esse cálculo. É ele que me mantêm seguro e é ele que irá me proteger para todo o sempre. Eu não posso internalizar de forma prepotente que sou capaz de saltar 3 metros de distância. Tem dias que eu posso não estar no meu melhor. E além disso eu irei envelhecer, né? Então naturalmente esse meu salto irá diminuir... A minha segurança (o meu ser e durar) nasce da avaliação do meu estado ali, naquele momento, naquela situação. Não importa se você já saltou 5 metros um dia. Isso não é uma prova de que você, agora, é capaz de repetir a mesma coisa e do mesmo jeito.

E é isso. Eu nem consigo acreditar que cheguei ao fim. Esse texto foi particularmente difícil de escrever porque todo esse processo acontece de forma muito rápida e automática, então eu tive muito trabalho e levei muito tempo para traduzir essas sensações em palavras. E, ao final, é tão bobo o pensamento, né? Talvez todas essas frases e parágrafos poderiam ser resumidos em: "Duddu vê o que tem pra fazer e se ele achar que consegue fazer ele faz. Grandes coisas!".

Pra mim é.