sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O corpo fala


Percebi que o ser humano quando gosta de algo, naturalmente desenvolve um código para identificar outras pessoas com esse mesmo padrão. Às vezes você reconhece essa paixão por símbolos óbvios e diretos: a faixa preta de uma arte marcial, o quarto pintado com a cor do time de coração, o bíceps de 42 centímetros e até mesmo aquela barriguinha que claramente veio do chopp com os amigos. Ás vezes se descobre por acaso, numa conversa de mesa de bar ou quando o assunto inesperadamente vem à tona. São sinais que disparamos (muitas vezes sem notar) e que acabam por “dar uma prévia” das características que constitui quem somos.

Na Grécia antiga, um guerreiro espartano era reconhecido pelo seu porte físico e pelo corpo esculpido, recorrente da alimentação controlada e do treinamento rigoroso. O regime de seleção que os bebês eram submetidos fazia com que praticamente todos eles, quando adultos, adquirissem o mesmo biótipo e comportamento (já que o sistema de ensino, treino e alimentação eram os mesmos para todos). Por esse motivo, acredito que um espartano seria capaz de reconhecer outro apenas com uma breve encarada.

Em se tratando de parkour, notei que existe um código de reconhecimento similar. E esse, até hoje, poucas vezes (ou nenhuma) falhou. Acontece que quando você se dedica muito tempo a subir muros, se pendurar em barras e ultrapassar blocos de cimento, ou então quando você absorve o que chamamos de “essência do parkour”, você se modifica, seu corpo se modifica e seu comportamento também. São três características que revelam muito o tipo de praticante que a pessoa é:

1 – Os calos da mão

Não adianta. Se eu for cumprimentar alguém e no aperto de mãos eu sentir aquela pele de bebê, lisinha, automaticamente eu não dou um real pela movimentação daquela pessoa ou pelo parkour que ela pratica. Pode me jurar de pé junto que treina cinco vezes por semana e que sobe muro de 7 metros. Dificilmente engolirei alguma palavra. Até hoje não encontrei um só praticante fanático por parkour que não tivesse calos grossos ou estourados na base dos dedos e na palma da mão.

2 – Cicatrizes e escoriações

Em algumas atividades cicatrizes são enxergadas como troféus ou resquícios de batalhas que se enfrentou. No parkour normalmente está associada ao tracer que durante uma movimentação foi idiota ou negligente. Mas não sejamos hipócritas: todo mundo que treina com afinco e scom dedicação diária acumula cicatrizes: seja na canela (precisões), seja no punho (cat-leaps) ou no joelho (kongs). Obviamente existem cicatrizes e cicatrizes. Há aquelas vindas do erro e da queda, e há aquelas vindas do treino bruto, condensado e constante (similar ao calejamento das mãos). Esse tipo de sinal, às vezes, deixa o entendimento ambíguo: ou o cara é um cara que treina já há muito tempo e passou por “n” situações dentro do parkour, ou então ele é somente um retardado que descobriu a menos de um ano e já acumulou todos os tipos de cortes, arranhões, fraturas e lesões possíveis. Normalmente a prova dos noves é o terceiro e último quesito que observo:

3 – Comportamentos no espaço que ocupa

Depois de um tempo, os tracers se tornam cidadãos super interessantes e bizarros. Ande lado a lado com um deles e, inevitavelmente, você o verá desviar a atenção pros corrimãos das fachadas das lojas ou pro topo dos prédios próximos uns dos outros. Como a cidade é o nosso parque de diversões, tudo nela nos chama a atenção e serve como local de treino. Isso pra não falar de quando a gente não se contém e anda na rua se equilibrando nos meio-fios, saltando as fendas das calçadas ou fazendo passadas nas riscas do chão.

Quando se anda em grupos, mesmo fora de horário de treino, as reações normalmente são as mesmas: “Dá pra fazer aquela precisão!”, “Êta cat-leap distante!”, “Um dia eu vou treinar aí!”. Se as vezes você não verbaliza, você pensa. É como um bando de tarados andando numa cidade onde todas as mulheres são absurdamente gostosas.

Vale lembrar que não adianta enrolar a si mesmo: o tempo de treino que uma pessoa tem não é contado a partir do momento que ela conheceu o parkour, mas sim com o quanto ela se dedica a ele e treina regularmente. Um ano treinando três vezes por semana é mais do que três anos treinando somente aos domingos.

Sei que preconceito é algo feio e que devemos evitar ao máximo possível. Mas, pra mim, não existe meio-tracer ou semi-praticante: Ou você é ou então você morre de inveja de quem treina de verdade e fica sorrindo de orelha a orelha tentando se enturmar.