O treino está marcado pra 15:00. E as 15:00 em ponto eu e ele chegamos.
- E aê?
- E aê.
Sem brincadeira, essas foram nossas únicas palavras durante toda a tarde.
Nas duas horas seguintes, embora os dois estivessem sempre no mesmo lugar, os únicos sons que conseguíamos ouvir eram os dos pés nos muros, o amortecimento das precisões, as raspadas, as passadas e os tombos. O engraçado é que não rolava em nenhum momento o pensamento de que "estou treinando sozinho". Não havia tempo pra isso.
O espaço era gigante (o centro de criatividade), mas aquele clima de silêncio e concentração fazia o treino render tanto que nos contentávamos com somente o básico e as repetições. Somente o correr e o passar.
Nesse momento não pude deixar de refletir: "Quantos não já teriam reclamado do lugar? Quantos não teriam a criatividade suficiente de inovar a cada minuto? Quantos não já teriam enjoado do que fazíamos ali?". Tudo se dava de forma bastante natural e transmitia a mensagem que guiava o treino dos dois: ser simples e ser Parkour.
Mesmo quando decidíamos trocar de ambiente, não haviam palavras. Um saia da vista do outro e o que ficou para trás logo em breve trazia as mochilas dos dois.
Quando o calor se tornou insuportável, decidimos quase que ao mesmo tempo tirar as camisas. Revelamos o óbvio: corpos lavados em muito suor.
De vez em quando compartilhávamos um mesmo percurso ou movimentação. Não era nem sequer aquela competição saudável de um instigar o outro. Era apenas uma mente alerta sugando experiência de uma outra mente alerta. Não existia o certo. Não existia o errado. Só existia o treino.
Eu sou sempre muito reclamão. Pra mim quase nunca alguma coisa está boa. Mas todas as vezes que treino com Finha volto pra casa muito feliz e com a sensação de dever cumprido.
Acredito que a palavra que define tudo isso é muito respeito:
Respeito que tenho por ele.
Respeito que ele tem por mim.
Respeito que temos ao que ambos buscamos.
Respeito ao espaço que estamos ocupando e as pessoas a nossa volta.
E respeito esse que deveria estar presente nos treinos de todos. Sempre.
A todos bons parceiros de treino, meu muito obrigado e meu respeito.
O novo texto do Blane "A Call To Arms" me tocou tanto que eu passei mais de um dia pensando no assunto até que decidi pedir a ele autorização para traduzir. Isso precisava ser lido por todos. Gastei algumas horas lapidando o vocabulário o mais que pude para que o mesmo sentimento com que ele escreveu pudesse ser entendido pelos brasileiros.
Inspirem-se, utilizem do texto e o repassem (em seus blogs, inclusive) sem moderação. Às Armas!
Agradecimentos ao Bronze pela tirada de dúvidas em alguns pontos.
Um Chamado à Luta (A Call To Arms) Por Chris "Blane" Rowat Tradução: Duddu
Desde quando uma travessia de 30
metros com uma criança pendurada em suas costas tornou-se menos importante do
que um salto de 18 pés entre dois pontos e com uma aterrissagem grotesca? Estou
pouco me lixando para suas passadas gigantes e barulhentas, pois há gente por
aí com 43 anos, o dobro da sua idade, duas vezes mais forte e que cai de 2
metros e não faz o menor barulho.
As coisas que deveriam importar
para o Parkour, não mais importam - e as coisas que hoje são largamente
consideradas como impressionantes não são mais quando você as analisa com
calma. Nossos valores estão sendo corrompidos.
Algumas vezes, tento olhar para o
Parkour de forma neutra, como se eu nunca tivesse ouvido falar sobre ele antes.
O que eu acharia dele se eu tivesse
ainda 17 anos e o descobrisse agora, ao final de 2012? Imagino que acharia bem
legal e que provavelmente iria mergulhar nesse mundo também. Só que, diferente
do que eu vi nove anos atrás, ele não iria me impressionar tanto como fez.
Se você terminar de ler esse
artigo e se convencer a respeito dos valores que eu acredito dentro do Parkour,
então você irá também se convencer de que se eu não me esforçar para espalhá-los
eles irão desaparecer.
Os novos iniciantes irão somente
enxergá-lo como uma atividade de pular de locais altos e não como uma prática
extremamente versátil e acessível para qualquer um com o desejo de encarar
desafios, conhecer e melhorar a si mesmo.
O que eu vi no Parkour em
2003, aos 17:
Uma
elite de poucos com qualidade de movimentação e atenção aos detalhes em
cada movimento que fazia e que esse nível era somente alcançado através de
milhares de horas de deliberada prática e treinamento.
O
espírito de um guerreiro insaciável com seu treinamento e com garra para
encarar qualquer desafio, seja ele físico, técnico ou mental.
Uma comunidade
em crescimento, positivista e inspirada por todos aqueles que vieram antes
dela.
Um
sistema de treinamento e uma comunidade que dava valor a todos os aspectos
do Parkour de forma igualitária, e uma consciência coletiva interessada em
um Parkour que durasse a vida inteira e não somente alguns meses.
O que eu vejo em 2012, aos
26:
Um
crescimento em massa do número de praticantes ao redor do mundo.
Big
jumps.
Péssimas
aterrissagens.
Competições.
Uma preciosa
minoria tentando se manter de pé sobre os velhos valores e duvidando de
suas razões em fazer isso…
...e
ultimamente, uma mudança do que é creditado como sendo Parkour.
E é justamente com essa pouca
minoria que luta e sobre essa mudança de valores que eu me preocupo.
Eu sou responsável por deixar
essa mudança acontecer sem encará-la, tanto quanto é responsável todos aqueles
da “minha geração”.Nós todos ficamos de
lado, deixamos o Parkour evoluir, ser modificado e se alastrar pela Internet
sem que disséssemos: “Espere um minuto,
isso é bom... mas e todas aquelas outras partes do Parkour por qual eu me
apaixonei? Onde estão?”
Eu tento sempre ensinar meus
alunos com esses valores em mente e eu sei que um bocado de homens e mulheres
também fazem o mesmo por aí. Mas acontece que não é suficiente mantermos esses
valores que nos cuidamos com tanto carinho presentes somente em nossas aulas em
algumas cidades ao redor do mundo. Temos que mostrar isso em larga escala se
quisermos mantê-los vivos. E mais importante do que isso, precisamos nos
preocupar em deixar nossos testemunhos para que eles possam ser encontrados por
todos aqueles que vierem a se interessar pelo Parkour em busca de algo mais do
que big jumps.
Nos últimos anos que se passaram,
ao invés de nos mantermos firmes e acreditar nos ensinamentos que passamos a
admirar quando conhecemos o Parkour, dia a dia, vídeo a vídeo, nosso sistema de
valores foi corrompido. Mesmo aqueles poucos que ainda hoje acreditam que
Parkour é para todos, pode sentir que está regredindo, que não é tão bom quanto
o cara novo, porque ele consegue fazer um salto que você não acha que consegue,
ou talvez você nem tenha vontade de fazer.
Mas se você se lembrar dos
valores que te trouxe a prática, então você não irá se importar em saltar tão
longe quanto o “cara novo”. Lembra do que uma vez você aprendeu? O que é um
salto, grande ou pequeno, sem uma boa aterrissagem? Quando foi que melhorar
suas subidas de muro, suas flexões, seus agachamentos, seu quadrupedal ou então
aumentar o seu recorde de ficar pendurado (se cair você morre!) se tornou menos
prazeroso do que aumentar a distância de seus saltos?
Eu já vi em alguns treinos em
grupo as pessoas fazerem piada com o cara que estava lá atrás se fudendo com um
colete de peso e tentando fazer suas barras ficarem mais fortes. Quando foi que
o que estava sendo executado por ele tornou-se uma parte inferior do Parkour?
Os desafios físicos não são algo
novo no mundo do Parkour. Ao menos desde que ele existe, os desafios físicos
são parte inerente a ele. Na verdade, como alguns de vocês irão se lembrar, muito
antes dos saltos chamarem a atenção, os desafios físicos ERAM o Parkour.
Hoje não são mais. Os desafios físicos (e
até mesmo, o treino físico) são atualmente espécie em extinção.
A ênfase mudou com o passar dos
últimos anos e o Parkour não é mais o terreno perfeito para se testar do que a
pessoa é feita fisicamente, tecnicamente, mentalmente... e emocionalmente.
Não é mais um desafio de saber se
você é capaz de correr de uma cidade pra outra e se aventurar a retornar antes
do pôr-do-sol. Não é mais um desafio para saber se você consegue empurrar um
carro velho numa ladeira com os amigos que você riu e chorou durante o dia. E
não é mais sobre conseguir entender o valor de se saltar para uma árvore
molhada em caso de um dia você tiver que resgatar um desses amigos que ficou
preso nela.
Agora é amplamente visto como um
palco para talentos, uma oportunidade para as pessoas mostrarem ao mundo como
eles conseguem saltar mais distante do que os outros. Ou então como eles estão
dispostos a viajar metade do mundo para fazer o mesmo salto que viu outro cara
realizar num vídeo do ano passado. Só
que agora ele chega lá e faz de side-flip.
Eu vejo competições onde o
“Melhor Atleta de Parkour” e os “Campeões Mundiais” gastam 37 segundos de
corrida tentando fazer qualquer coisa mais impressionante do que o cara que se
apresentou antes dele. Isso tudo antes do tempo acabar ou dele ficar sem
fôlego. 37 segundos de uma perfomance medíocre? Eu tenho treinado com homens e
mulheres que poderiam durar 37 minutos naquela mesma intensidade.
Quem deixou essa babaquice ganhar
espaço sem resistência? Quando foi que isso se tornou o foco? Quando foi que
fazer um salto mais longe que alguém se tornou algum valor para o Parkour?
Quando foi que visitar um pico pra repetir os mesmos movimentos que alguém já
fez se tornou a meta? Eu detesto admitir, mas fomos nós que deixamos essa merda
crescer. Permitimos isso quando passamos a duvidar de nós mesmos e passamos a
cogitar a possibilidade de um big jump ter alguma importância.
Aqui esta o vídeo de Jesse Owens saltando
26 pés (algo próximo a 8 metros) em 1936, Berlin, Alemanha.
Esse é um salto enorme mesmo para
os padrões e a metodologia avançada de treino que temos hoje em dia. E esse
salto não é só distante, mas muito, mas muito mais distante do que qualquer
salto já realizado por qualquer praticante de Parkour entre dois pontos. Então
porque a comunidade do Parkour (e, de fato, o mundo) fica impressionada quando
alguém pula 18 pés entre dois muros e desmorona como se ali tivesse alguma
caixa de areia como a de Jesse no vídeo? É porque eles são “corajosos” o
suficiente de fazer isso em uma fenda? Em muitos casos o medo de cair só é
derrotado pelo pensamento em ficar imortalizado no Youtube diante de milhares
de pessoas vestidas em seus pijamas. É isso que você entende por “coragem”? Se
for, então, por favor, feche essa página agora porque não há nada aqui pra
você.
Mas se tem uma razão pessoal e válida
para fazer um salto que carrega um risco para provar algo a si mesmo e então
ultrapassar sua própria compreensão e responder as suas dúvidas; agir quando
tudo dentro de você quer sair dali e ir para casa com intenção de provar SOMENTE algo a si mesmo; então isso é que é coragem e
determinação. E esses são alguns dos valores que verdadeiramente foram
construídos no Parkour. Os mesmos valores que a cada dia desaparecem diante de
seus olhos. Ficar eufórico e se esforçar o máximo que puder para provar seu
valor diante de alguém que esta do outro lado da internet, ou porque seu amigo
já fez aquilo uma vez, somente revela imprudência e alguém com vida curta
dentro do Parkour.
Eu gostaria de acreditar que a
maioria das pessoas que estão lendo esse texto irão concordar que Parkour deixa
de ser Parkour sem algum desses valores. Valores como coragem, decisão,
fortalecimento, força, disciplina, dedicação e longevidade. Valores como
humildade e altruísmo. Integridade.
Existem diversas maneiras que podemos
ajudar a mudar positivamente o futuro de nossa prática e o melhor ponto de
partida, e o jeito mais fácil, é não permitir que esses valores sejam perdidos.
Podemos inspirar a próxima
geração de praticantes e permitir que eles compreendam que Parkour é muito mais
do que realizar saltos impressionantes apenas fazendo com que nossas opiniões
não adormeçam.
Comente nos vídeos, faça upload do
seu próprio, escreva artigos, ensine, converse, viaje e treine da maneira que
você acredita que o Parkour deveria ser treinado. Deixe as pessoas verem esse
lado aonde quer que você vá. Represente e seja.
Esses valores não precisam ser
manifestados como os desafios que mencionei anteriormente, mas ultimamente a
única maneira que podemos significativamente crescer é encarar e se adaptar para
superar essas adversidades. Isso pode ser feito da mesma forma que você encara
um salto, quando ele te amedronta porque você crê que vale a pena enfrentar o
seu medo e testar sua habilidade.
Pode ser de forma técnica. Ou
talvez seja repetindo uma precisão correndo para um corrimão fino e tentando
aterrissar perfeitamente 3 vezes consecutivas. 10 vezes em seguida. 50.
Ou talvez seja um desafio físico
afinal. Você pode simplesmente escolher um dos seus exercícios favoritos e
fazer um teste pra saber até quando você agüenta refazê-lo. Testar quantas
repetições você consegue executar em dez minutos ou quanto de peso você
consegue erguer depois de 6 meses de treinamento dedicado.
Na verdade, não importa qual será
o desafio. O que importa é que você se desafie com freqüência a fim de
realmente se conhecer e saber do que você é feito. Esse confronto e disposição
para encarar obstáculos é o coração da fera que o Parkour é, e que
infelizmente, a cada ano que passa ele bate cada vez mais devagar. Mas é essa
exposição regular a desafios, tal quais esses que montamos, que irá disseminar
esses valores nas pessoas.
O que as pessoas parecem não
perceber é que um garoto de 19 anos que consegue saltar 18 pés, depois de um
ano de treinamento, muito provavelmente não estará mais aqui nos próximos.
Poucas pessoas permanecem mais do
alguns poucos anos nesse jogo, seja por conta de um machucado, perda de
interesse ou qualquer outro dos incontáveis motivos. Então, ainda que o que ele
faça seja impressionante, sim... o que você está treinando para fazer, 'ser e
durar', pelos próximos 10, 20 anos... e mais, ainda forte, progredindo, treinando
e se divertindo com o Parkour... Isso é muito mais impressionante para mim.
Estes são os valores e os objetivos que me impressionaram e que existem naquela
pequena elite que mencionei anteriormente. Estas são as coisas que eu não verei
perdidas nos anos que estão por vir.
Não peça desculpas a respeito dos
valores que você acredita e, mais importante ainda, não permita que o Parkour
os perca se você acredita neles! Parkour vai se desenvolver e se tornar o que
ele tiver que se tornar diante dos olhos de todos, mas se mantenha firme no que
você considera importante porque você não está sozinho!
Não o deixe morrer ou então a
próxima geração poderá jamais ver ou experimentar o que você viu e fez quando
você descobriu o Parkour. Deixe o desafio e a longevidade moldar seu
treinamento, seu objetivo e suas motivações. Estabeleça seus próprios desafios,
mesmo se alguns deles parecerem impossíveis, pois mesmo neles você aprenderá um
bocado. Lembre-se que o desafio não é um desafio se você não sabe como
realizá-lo.Pegue um envelope, faça um
convite à dúvida e a sua descrença e transforme esses velhos inimigos em seus
aliados. Encare hábitos que parecem ser insuperáveis, freqüentemente, e então
você crescerá como pessoa.
Se você quiser repetir aquele
pequeno salto, aquele com um ângulo complicado, para uma parede coberta de limo.
Se você pretende treiná-lo até chegar o dia em que você poderá realizá-lo com
os olhos fechados... então meu caro amigo, você não está sozinho! Eu quero
repetir esse salto com você! Mas vamos fazer 50. Só pra ter certeza. E um a
mais por aqueles que não podem se juntar a nós. Isso fará a nós dois um bem
maior do que aquele salto por cima do telhado carregando uma câmera.
Nós somos uma minoria agora, mas
juntos nós somos ainda uma influência sobre aqueles que dizem que praticam
Parkour. Ainda podemos fazer nossa mensagem ser ouvida por todos aqueles que
conhecerão o Parkour agora, e nos próximos anos.
Este é um
chamado à luta para aqueles que ainda se consideram a vanguarda do Parkour. A
hora é agora. Faça a diferença mostrando, compartilhando e sendo todos os
outros lados do Parkour que conhecemos e amamos. Os lados que muitos de nós
estamos vendo ser esquecidos enquanto a nossa prática cresce.