Eu acho que estou ficando doido. De uns dois anos pra cá, tenho percebido uma grande mudança acontecendo em mim e, embora eu esteja consciente dela, ainda não a compreendo e não sei se haverá (ou quando haverá) uma estabilização.
Quando ouvi pela primeira vez o "Só sei que nada sei.",
de Sócrates, ele havia sido usado de forma descontextualizada. Comumente é
assim: as pessoas repetem uma frase no automático e poucos sequer procuram interpretá-la
antes de abrir a boca. Óbvio que eu não tenho como perguntar a Sócrates o que
ele queria dizer, mas hoje, durante um treino imbecil que rasgou minha mão, achei uma coerência para ela.
O Parkour é um conceito mental que você projeta em si mesmo
e no ambiente que te cerca. A tal chamada "filosofia" torna-se real
quando você percebe que não é mais capaz de separar de onde vem os seus
aprendizados e quando percebe que as mesmas situações que enfrenta no treino na rua estão presentes com você 24 horas por dia: nos relacionamentos, nos estudos, no
trabalho, na lavagem de pratos, na zoeira com a galera...
Desde que tomei consciência de que estou passando por essa
transformação, tenho sido presenteado com momentos incríveis e antagônicos ao
mesmo tempo: ora sou bombardeado com uma noção de mundo extremamente
simples e feliz e ora com muita autocrítica e frustração.
Eu costumo associar o Parkour sobretudo com clareza de
pensamento e lucidez. Castigamos tanto os nossos corpos com repetições de um
mesmo movimento, nos esforçamos tanto em descobrir as falhas do ambiente e nos
tornamos tão capazes de solucionar os nossos obstáculos, que isso faz da gente
um profissional na resolução de conflitos: seja da espécie que for e desde que se tenha o conhecimento necessário. A energia
que eu preciso para resolver a minha vida é algo que criei em mim conforme me
desenvolvia nos treinos. A corrida contra o muro é também a corrida contra o tempo para saber quem você é e do que é feito. E as soluções e conquistas nesse processo, não só irão te dar algumas certezas sobre isso mas, principalmente, te munir de aprendizados sobre tudo.
Porém, essa característica torna-se também uma fragilidade.
Quanto mais lúcido me torno do mundo a minha volta, mais sinto necessidade de
me voltar para mim mesmo. "O que eu faço? Como trato as pessoas e
no que invisto meu tempo?". As respostas nem sempre são boas. A mesma análise crítica e
a percepção das falhas que tenho do ambiente a minha volta foram
automaticamente transferidas para o restante da minha vida. As vezes tenho que fazer vista grossa para minhas deficiência para que seja confortável viver comigo mesmo enquanto tento corrigi-las.
Hoje vejo meu relógio trabalhar em câmera lenta. É a mesma sensação que tenho quando estou correndo, sem rumo definido, escolhendo técnicas em frações de segundos e decidindo no meio de cada passo se irei por um caminho ou pelo outro. A impressão é de que vivo um "bullet time" real, onde todos os elementos ao meu redor se movem devagar e tenho tempo para observar tudo, tentar compreender tudo e capturar e absorver todos os pixels de cada imagem.
E foi nessa corrida frenética em câmera lenta que eu descobri
que nada sei. Dentro dessa condição, passei a enxergar uma coleção de falhas e
defeitos. Percebi o quanto sou pequeno diante do todo e o quanto
ainda sou ignorante mesmo nas coisas que eu achava dominar. Viver é um ofício
complexo e em tempo integral. Estar consciente disso faz essa sua caminhada
duplamente mais árdua.
Em contrapartida, isso tem me tornado mais brando, mais
calado e mais introspectivo. Alguns amigos já perceberam e perguntaram "O
que está acontecendo?" e eu não soube o que responder. Em alguns casos, eu
até queria falar muita coisa, mas fiquei calado porque a minha voz não saia. Esse estado de
"despertar" me fez entender que cada palavra que sai da minha boca
tem um custo e que cada uma dessas palavras é também um atestado de quem eu
sou. Logo, se quanto mais aprendo, mais vejo que não sei muita coisa, eu não devo
falar se não quiser assumir responsabilidade por algo que ainda não tenho
controle. Não enquanto eu não estiver pronto. E isso é um trabalhinho de
formiga|, porque eu sempre sou muito direto, ácido e cru quando o assunto
é a minha opinião e o que acredito.
Na movimentação, isso tem se refletido de forma mais
positiva. Passei a sentir com leveza e suavidade aquilo que antes eu era
incapaz. Meu olhar crítico e a atenção aos detalhes parece que tem se
multiplicado. A maturação de uma técnica não é algo que se forja da noite pro
dia. É ela que diferencia a precisão do iniciante da mesma precisão, no mesmo
local e condição, feita por um veterano. Os dois fazem a mesma coisa, atingem o
mesmo ponto, desenham o mesmo arco no ar. Porém, quando o iniciante salta,
parece que ao sair do chão a mente dele sofre um apagão e ele só recobra a
consciência no momento do impacto. Diferente disso, uma pessoa bem treinada, uma pessoa
que já é desperta, durante o mesmo movimento, se sente na câmera lenta que falei
lá em cima: cada microssegundo é vivido e sentido. Entre a saída do chão e o retorno
à ele, há uma eternidade que pode ser narrada. A consciência do que se faz é tão
grande, que a impressão que tenho é que se você arremessar uma bola durante
esse salto, essa pessoa irá girar o braço e agarrá-la antes de concluir a
precisão. É um momento de vazio lúcido.
Essa maturidade na movimentação segura sua cabeça entre os dedos, chacoalha, te coloca de volta no chão e diz: "Agora é com você! Se vire!". E cara... a sensação é incrível.
Essa maturidade na movimentação segura sua cabeça entre os dedos, chacoalha, te coloca de volta no chão e diz: "Agora é com você! Se vire!". E cara... a sensação é incrível.
Durante minha jornada sempre achei o Parkour algo naturalmente agressivo. Agressivo no sentido de que nos tornamos brutos, metódicos, críticos, anarquistas (não conformistas), explosivos, raçudos e resilientes. O corpo se torna mais forte, você se firma no chão com mais austeridade, segura no muro como se quisesse estourar o tijolo na mão... e por aí vai. Tornar-se um ogro faz parte do processo de treinamento. Queremos pular mais longe, queremos correr mais forte, forçamos mecanicamente nosso corpo a quebrar limites e geramos muito barulho nesse processo. Somos muitos barulhentos, meu deus do céu... Não estou falando de barulho em precisões, estou falando de agressividade.
Tenho avaliado muito minha movimentação e cheguei a
conclusão de que com o tempo toda essa brutalidade explode e você se vê com um
diamante nas mãos. Sua movimentação se torna tão parte de você, tão natural,
que o espaço que antes era preenchido com toda essa agressão dá lugar a uma
suavidade calorosa, inexplicável e confortadora. É comum passar a realizar ações
que consomem uma energia danada, ações que são complexas e complicadas até para
se explicar, mas que ainda assim são executadas como se o esforço e o trabalho
não existissem. Ouvir das pessoas "Porque quando você faz é tão fácil?"
ou "Aff, quando você faz parece que isso não é nada!" se torna uma rotina.
Mas o que essas pessoas enxergam quando você se move é uma ilusão. Nada ali é simples. Você é que
se tornou simples, sua movimentação encontrou paz e você está muito mais controlado e mais senhor das suas ações.
Eu tenho começado a me sentir assim. E devo confessar que é
algo tão encantador que parece magia.
Todo esse meu discurso é, no final das contas, impreciso. Eu estou tentando colocar em palavras algo tão complexo, simplesmente porque eu sou intrometido, enxerido e ousado por natureza. Mas sei que mesmo com tantas letras tentando explicar (ação que já me contradiz), isso tudo é algo tão abstrato e tão lindamente confuso que eu não espero que muita gente compreenda. A não ser, é claro, que você esteja "parando de fumar" e se sinta em processo de "despertar". Caso sim, talvez haverá uma identificação.
Todo esse meu discurso é, no final das contas, impreciso. Eu estou tentando colocar em palavras algo tão complexo, simplesmente porque eu sou intrometido, enxerido e ousado por natureza. Mas sei que mesmo com tantas letras tentando explicar (ação que já me contradiz), isso tudo é algo tão abstrato e tão lindamente confuso que eu não espero que muita gente compreenda. A não ser, é claro, que você esteja "parando de fumar" e se sinta em processo de "despertar". Caso sim, talvez haverá uma identificação.
O que levo disso tudo é que quanto mais ando, mais longe pareço estar de algum lugar. Quanto mais homem me torno, mais me vejo como um menino. E quanto mais eu grito, menos eu me escuto. Abaixo, eu fiz um desenho desse texto. O problema é que eu não sei desenhar.