terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

"Gustavo, eu te odeio!"


Não consigo parar de repetir essa frase durante meus últimos treinos. Gustavo é um cara que durante muito tempo treinou descalço. Acho que durante mais ou menos 1 ano acompanhei os treinos com esse favelado e não tinha maturidade pra entender o porque dele se inserir em um meio que o excluia da esfera de "evolução rápida" que todo tracer sentia prazer em estar.

Explicando melhor, o Edi é capaz de fazer cat-leaps de "n" pés, eu de fazer sdcs grotescos; evoluímos de forma cavalar em pouco tempo e o gustavo... er... ficou na precisão descalça de 8 pés e nos flowzinhos curtos e compassados.

Em Dezembro ele me deu um tapa na cara:

"Gustavo, todo mundo que eu vejo a minha volta evolui a amplitude e "agressividade" na movimentação. E você está sempre na mesma. Nunca tenta um cat-leap mais distante, nunca vejo você se desafiando a fazer algo novo e mais complexo... não acha que está perdendo tempo em não forçar seu corpo um pouco mais não?"

A resposta pra tanta ignorância minha veio em uma frase curta:

"Eu tenho todo o tempo do mundo".

Essa foi somente uma das muitas vezes em que essa, até então, minha ignorância foi quebrada pela sensatez desse baiano viado. Todo mundo que treina com um pouco mais de seriedade, almeja fazer isso pra sempre. Então por que eu tinha na cabeça esse pensamento de que as pessoas sempre deveriam apresentar algo que impactasse pra demonstrar o resultado dos treinos?

Tenho consciência de que nunca treinei por vaidade e muito menos pra provar a ninguem do que sou capaz. E depois de muito matutar cheguei a conclusão de que esse meu pensamento foi mais um legado que a ginástica olímpica implantou em mim. Um dos principais focos dos meus treinos não era ganhar as competições mas evoluir a dificuldade das combinações de movimentos. Na ginástica essa escala vai de "A" até "Super E". Cheguei a fazer combinações A, B, C e D. E meu orgulho era imenso ao galgar cada degrau desse alfabeto.

Fiz o mesmo com o parkour esse tempo todo e me fudi. Evolui muito rápido, confiei no meu passado muscular e mental e negligenciei treinamentos básicos que o Gustavo gastou 1 ano fazendo.

Passamos cerca de oitos dias juntos nas ultimas semanas, inclusive três desses foram com ele aqui em aracaju treinando diariamente. Nesses tempo ele fez uma lavagem cerebral em mim, me transformou em um crítico tão grande em matéria de parkour quanto eu sou em matéria de ginástica por causa do curso de arbitragem que fiz.

Estabelecemos um flowzinho pra eu fazer. Coisa básica de iniciantes: "passa muro, passa mureta, passa mureta, corre, passa mureta". Fiz achando que estava abafando; flui dentre os movimentos, fiz o mais rápido que conseguia, mas no final a cara de reprovação que esse menino fez... da próxima vez eu peço um soco no lugar. Me apontou diversos erros tolos na minha movimentação: gasto de energia desnecessário, afobação, respiração, calcanhar, contração muscular errada, suavidade inexistente... Claro que não topificou, apenas abriu meus olhos pra enxergar isso tudo. Tentei fazer o mesmo percurso descalço e percebi melhor tudo aquilo que errava. Pisadas de rinoceronte... um verdadeiro Juggernaut.

Adquiri um senso crítico de mim mesmo que me vez enxergar mais erros do que acertos em minha movimentação. Uma frase que ele usou cai como uma luva agora: "Fazer é fácil, quero ver você fazer leve!"

Durante o resto dos treinos, mesmo com ele de costas pra mim, eu sentia o "olhar de reprovação" pra tudo aquilo que eu fazia.

Voltei ao começo. Atualmente estou treinando descalço ou com tênis de futsal e tenho sofrido pra caralho. Meus pés estão doendo muito, minha panturrilha tá inchada, o gasto físico do corpo quando se treina com consciência do que se faz é muito maior do que treinar por treinar. Estou aprendendo a duras penas que o meu progresso foi muito rápido e descontrolado. Até andar na rua se tornou motivo de "o gustavo está me olhando!".

"Você já reparou como as pessoas andam? A ciência aponta o calcanhar como base da caminhada e os tênis de hoje em dia trazem proteção cavalar pra suportar esses impactos. E as pessoas, mal acostumadas, se apoiam nesse conforto agredindo seu corpo a cada passada. Quando começei a treinar respeitando meu corpo até minha forma de caminhar mudou. Cada passada na rua tem uma flexão de joelho para que o calcanhar não se sobrecarregue".

Em um texto antigo usei a seguinte frase: "O futuro do parkour assusta se você pensar em uma realidade onde as pessoas são auto-suficientes". Fico muito feliz em ver que existem pessoas como o Gustavo que vão lutar pra que esse futuro não se torne real.

Valeu por tudo, meu irmão! E volte sempre!

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Debate do 1º Encontro Paraibano de Parkour


O debate do encontro paraibano de parkour contou com a participação do diretor da Aliança Francesa da Paraíba (que até poucos meses morava na França), Fernando Cunha (Professor de Educação Física da UFPB), Vant (diretor do Grupo Ethnos), tracers das mais variadas regiões da Paraíba, assim como eu (de Aracaju) e o Edi e o Ítalo (ambos de Maceió).

A mesa-redonda teve duração de pouco mais de 2 horas e aconteceu na Associação dos Bancários, João Pessoa/PB. Os assuntos não foram pré-definidos, portanto sempre que algum tópico encontrava-se “concluído” era feita a pergunta “podemos seguir adiante?”.

Segue abaixo as impressões mais importantes que tomei nota (não necessariamente discutidas nessa ordem):

01 - Air Alert 3

O professor Fernando Cunha é especializado em trabalho de preparação com atletas de vôlei e basquete, e, portanto foi questionado sobre o famoso programa de treinamento que é repassado por dentre os praticantes. O resultado obtido na discussão foi de que o programa da NBA não faz milagre. É um sistema utilizado por atletas de alto rendimento que passaram desde a adolescência por um treinamento de elite, e, portanto, possuem as fibras musculares e tendões mais desenvolvidos para se submeter ao programa. O máximo que pode ser utilizado pelos tracers são as idéias de exercícios e a padronização de rotinas.

02 - CREF / Universidades

O professor Fernando Cunha é militante de um movimento anti-CREF e ressaltou que futuramente os praticantes de parkour que se encarregarem de ministrar aulas pagas poderão sofrer com a repressão do órgão (assim como aconteceu com os mestres de capoeira e os professores de dança). Iniciativas como os workshops do PKGEN, e o ADAPT, podem ser passíveis de caça as bruxas no Brasil. O professor assegurou que assim como os mestres de capoeira, os praticantes que futuramente ingressarem no ramo de “dar aulas” podem alegar o tempo de prática como “formação” e lutar judicialmente (se chegar a esse extremo) para continuar a lecionar.

03 - Abordagem ao iniciante

Ficou de comum acordo que não existe uma fórmula mágica para abordar o iniciante. Cada ser humano é individual e terá suas dificuldades e facilidades. Como o contato primário do iniciante é, normalmente, com um outro praticante, o melhor a ser feito é orientá-lo para que ele perca a visão de que parkour é o que ele viu no filme/televisão/vídeo e que ele aprenda a enxergar o que precisa fazer com seu corpo para conseguir se movimentar livremente (perder peso, ganhar resistência respiratória, força de abdômen...).

04 - Associação / Organização

A Paraíba está na iminência de criar a Associação Paraibana de Parkour, então a discussão sobre o tópico foi grande. Criar uma associação demanda muito gasto, quebra de cabeça, conhecimento jurídico e empenho em troca de (a principio) pouco retorno. No caso da Paraíba, eles já tiveram como receber apoio governamental e foram barrados por não possuírem um CNPJ. Então, para eles, a necessidade da associação é maior. Porém, para os grupos e estados que não tem tantos contatos em prefeituras e órgãos (Vant, que é um dos coordenadores do parkour em PB, por liderar a “cultura de rua” da cidade, conhece toda sorte de incentivos públicos) chegamos à conclusão de que é melhor nos organizarmos localmente, em iniciativas pequenas e um dia, se necessário também, evoluir para algo imenso como uma associação.

05 - Aliança Francesa

Vant conseguiu o apoio da AF de João Pessoa (cessão de camisas) e o diretor dela (presente no debate) levantou alguns pontos sobre o assunto. A AF não é somente um curso de francês no Brasil. Ela tem interesse voltado para toda manifestação francesa no país e está presente em quase todos os estados brasileiros. O diretor, inclusive, encorajou a mim e ao Edi a buscar as alianças francesas de nossos estados, pois elas normalmente apóiam com facilidade esse tipo de eventos. Existe uma comissão julgadora de onde a verba de patrocínio da aliança será utilizada, mas desde que o pedido de apoio seja feito com antecedência ao evento, a chance de sucesso é grande. Ele disse ainda que futuramente encontros de parkour podem se tornar encontro de alianças (e facilitado pela ação conjunta delas) e que até a vinda de alguma “autoridade francesa” para engrandecer o evento pode ser arranjada com maior facilidade.

06 - VO2Max

Como o professor foi avisado com antecedência sobre o debate, ele buscou informações e a ver vídeos sobre o parkour. A análise dele foi de que o parkour (como deveria ser treinado) é uma atividade altamente aeróbica (foco na resistência) com seus momentos distintos de trabalho anaeróbico (foco na explosão muscular). Então ele salientou a necessidade de nós, praticantes, aumentarmos o Vo2max constantemente. VO2max é a taxa máxima que o organismo de um indivíduo tem de captar e utilizar o oxigênio do ar que está inspirando para gerar trabalho. Quando questionamos como isso pode ser melhorado, ele respondeu que através de corridas com percursos determinados e com o aumento gradativo destes. O ritmo de corrida também influencia diretamente nessa taxa porque quanto mais seu corpo trabalha sem parar, mais oxigênio você precisa respirar para supri-lo. O resultado dessa discussão foi que hoje em dia a maioria dos treinos dos praticantes são voltados para a movimentação em si (manobras com trabalho, principalmente, anaeróbico) e a parte da corrida é, muitas vezes, negligenciada. O ideal é que um tipo de treino jamais substitua o outro.

07 - Ramificações oriundas do parkour (Puro, Estético e Competições)

Assim como todo esporte ou atividade que compõe a chamada “cultura de rua”, inúmeras variantes surgirão com a o parkour disseminado a cada dia mais. Cada cabeça funciona de uma forma e busca um objetivo diferente. O cenário paraibano não é dominado por tricksters e free-runners, então o conceito de “parkour puro” é aceito com facilidade por lá. Estendamos a conversa para o cenário mundial e nacional para definirmos o que a propagação de cada idéia reflete no cenário da prática. O resultado obtido foi que “existe espaço para todos”. O que falta é cada nova vertente saber limitar-se ao seu espaço e não tomar posse do espaço do semelhante. Assim como o futebol de areia não participa da regulamentação do futebol de campo, cada “nova disciplina” deve buscar sua firmação sem apoiar-se ou atrapalhar a disseminação da outra. Do contrário, se as novas disciplinas não aprenderem a respeitar que, o que se faz é diferente do que o parkour em si prega, os puristas irão continuar a falar e a gerar discussões em defesa do parkour puro. A definição de parkour no debate ficou clara: objetividade, fluência e livre movimentação corporal com o propósito de ser o mais rápido e prático possível. Qualquer coisa pregada de modo a ferir esse conceito deveria ser chamada por outro nome.

A discussão sobre competição praticamente não existiu pela unanimidade de opinião: não é o foco do parkour, nunca será, e se alguém criar algo do tipo, deixou de ser parkour.

08 - Parkour em Lisses

O diretor da aliança francesa visitou Lisses na época em que o parkour surgia e deu umas palavrinhas de como isso se sucedeu. Disse que as crianças não tinham opção de diversão, a cidade era muito parada e os jovens facilmente ingressavam na marginalidade. A atitude dos fundadores do parkour foi de levar para aquela comunidade algo que eles poderiam fazer sem precisarem de um espaço construído pra eles, um apoio governamental ou mesmo aprovação dos pais. Comentou ainda que o parkour nasceu de forma espontânea para dar liberdade e aliviar a atmosfera “cinza” e monótona que cercava os jovens de Lisses.

09 - Necessidade de Intercâmbio

Ficou definido como algo imprescindível para a propagação do parkour e a própria melhora individual. O próprio pessoal da Paraíba se impressionou com a “cara nova” que os visitantes deram aos seus locais de treino e com as diferenças sutis de foco durante os treinos. A troca não acontece de um lado somente e da mesma forma, os visitantes puderam aprender com a forma de treino paraibano. O resultado foi tão satisfatório que, Eu, o Edi e o Ítalo conseguimos meio que arrastar alguns praticantes do Paraibano para o Nordestino.

Conversamos também sobre o crescimento que esses intercâmbios provocaram no parkour nordestino nos últimos dois anos e que a tendência é que eles aconteçam cada vez com mais freqüência.

10 - Impactos e Equipamentos de segurança

Reafirmamos a necessidade do tracer depender cada vez menos de suportes e equipamentos para se locomover e então o professor da UFPB levantou uma discussão sobre se não era negligência dos praticantes fazer descaso do uso de aparelhagem de proteção individual. Vários praticantes manifestaram opinião que iam desde o uso de cutuveleiras aos tênis da moda com amortecimentos exagerados. O resultado atingido foi de que o parkour necessitaria de proteção individual se os riscos oferecidos ao iniciante fossem os mesmos que são apresentados aos veteranos. Como o desenvolvimento físico e mental é gradativo e o processo de descoberta do parkour por parte do iniciante deveria ser constante e consciente (e essa consciência deve ser implanta no iniciante pelos veteranos), o uso de equipamentos passa a ser desnecessário. Um iniciante não deveria precisar de proteção individual contra impactos (por exemplo) justamente por não precisar se colocar em situações em que a gravidade dos impactos aponte para uma proteção auxiliar. O fortalecimento dia após dia, e o ganho de atenção meticulosa é que deve substituir qualquer apetrecho.

11 – Alongamentos e Aquecimento

Muita gente no evento tinha dúvidas sobre a eficácia de alongamentos, aquecimentos e se havia necessidade real de fazê-los antes dos treinos. O professor explicou que somente o fato de você provocar um estimulo ao seu corpo já faz com que seu cérebro se prepare pros exercícios que virão. O sistema muscular é ativado e descargas energéticas são disparadas internamente. O aquecimento, principalmente, serve pra aumentar a irrigação de sangue no músculo (pois esse vai precisar de toda fonte de oxigênio disponível) e o alongamento, principalmente, lubrifica as articulações (que serão prejudicadas se estiverem secas ao receber os impactos). Fora isso, o alongamento estende o músculo para que as fibras se desentrelacem, e não provoque danos com o rigor das contrações. Algumas pessoas argumentaram que leram em textos que alguns estudos mostraram diminuição na performance muscular após alongamento durante o treino. O professor disse que existe uma corrente em estudo dessa teoria, mas que ela se restringe a somente diferenciar os benefícios e prejuízos de se treinar alongamentos estáticos sem aquecimento prévio, e vice-versa. O resultado da conversa é que é imprescindível alongamento e aquecimento antes dos treinos para evitar lesões e ter um aproveitamento muscular assegurado.

12 - Percursos Planejados / Percursos Programados

Esse debate foi realizado logo após traçarmos o que consideramos ser parkour. Os praticantes foram questionados até qual ponto seus treinos são “de parkour” e quando eles passam a se tornar “para o parkour”. Após diversas opiniões, concluímos que a grande maioria dos praticantes treina “para o parkour’. Esses treinos, em sua maioria, são de repetição, tentativa e erro, análises de técnicas e percursos pré-estabelecidos. O parkour em si lidaria com uma situação de deslocamento real e natural, com direito a terrenos diferentes, situações inusitadas e onde a única garantia do praticante seria a habilidade de moldar sua movimentação aos obstáculos que surgissem.